Esta é uma história de amor embora algum leitor possa protestar que instintos menos nobres a dominem. Envolve uma mulher, um homem e um sentimento entre os dois. Se não quiserem chamá-lo de amor, tanto faz. Uma rosa com outro nome teria o mesmo aroma, etc., etc.
Encontraram-se em frente às sopas. Ele examinava uma "soup a l'oignon", ela pegou distraidamente um creme de lagosta, bateu no braço dele e deixou cair a lata.
Desculparam-se mutuamente e em pouco tempo estavam conversando. Sobre sopas, a princípio e - à medida que percorriam as prateleiras - sobre outros interesses comuns, sólidos e líquidos. Quando chegaram aos queijos já tinham descoberto várias afinidades. A principal era um gosto pelo champignon que beirava a paixão.
Devo esclarecer que nem ele nem ela eram jovens. Mas ainda havia nos dois - como uma débil chama sob a caçarola, o bastante para manter o molho morno, mas longe da ebulição - um saudável apetite pela vida.
- Conheço uma receita de champignon... - disse ela, baixando os olhos.
Ele chegou mais perto para sussurrar:
- Como são?
- Recheados.
- Mmmmmm.
- Só me faltam trufas para completar a receita. Nunca encontro trufas...
Ele olhou para os lados antes de dizer no ouvido dela:
- Tenho trufas na minha casa. Da França.
- Não!
- Talvez um dia nós pudéssemos...
- Meus champignons recheados, finalmente, com trufas! É um sonho que eu tenho desde que...
- Desde que?
- Desde que meu marido morreu.
Ele engoliu em seco. Estavam agora na seção de bebidas.
- Seu marido tinha trufas?
- Não é isso. É que... - ela estava alvoroçada. Pegou uma garrafa de Grande Marnier para disfarçar seu embaraço. - É que comecei a cozinhar depois que meu marido faleceu para passar o tempo. O meu grande prato é o champignon recheado. Mas nunca fiz com trufas.
- Há quantos anos você...
- Sim?
- Está sem trufas?
Ela estava rubra como um rótulo de Johnny Walker (Red Label).
- Doze anos.
- Curioso. Nos cinco anos desde que minha esposa faleceu, nunca fiz nada com as minhas trufas. Fora um ou outro molho que a cozinheira invariavelmente estraga.
Alguma coisa nasceu entre os dois naquele instante. Alguma coisa ainda crua, a sugestão da sombra da possibilidade de uma idéia. Não podiam ter certeza de que daria certo. Às vezes está tudo conforme a receita - champignons dos grandes, o recheio de queijo, a manteiga e o creme para o molho, as trufas acrescentadas ao molho antes de gratinar - e não dá certo. Mas como saber, sem provar?
Esta história tem dois finais. Doce e amargo, como na cozinha oriental. Ela pergunta para ele "Você quer?", ele pergunta "Na minha casa ou na sua?" e ela responde "Na minha, porque eu conheço a cozinha". No outro final, os dois se despedem, nunca mais se vêem e o espectro de uma possível "sauce" com trufas perfeitas para o champignon recheado fica pairando entre as prateleiras para sempre, enquanto os preços aumentam em silêncio.
3 comentários:
o segundo final é o único que se aproxima um pouco da minha realidade
Luis Fernando Veríssimo é muito massa =)
Essa é uma segunda versão desse conto brilhante. E, infelizmente,muito do brilho se perdeu:diálogos interrompidos, frases
amputadas,a sensação é de que se optou (será que o autor sabe?) pela simplificação do texto, como se um pequeno conto bem-humorado não pudesse ser também complexo e até filosófico.Uma pena. Ainda bem que tenho o original...
Postar um comentário