quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Conto Supérfluo (de Luis Fernando Veríssimo)

Esta é uma história de amor embora algum leitor possa protestar que instintos menos nobres a dominem. Envolve uma mulher, um homem e um sentimento entre os dois. Se não quiserem chamá-lo de amor, tanto faz. Uma rosa com outro nome teria o mesmo aroma, etc., etc.

Encontraram-se em frente às sopas. Ele examinava uma "soup a l'oignon", ela pegou distraidamente um creme de lagosta, bateu no braço dele e deixou cair a lata.

Desculparam-se mutuamente e em pouco tempo estavam conversando. Sobre sopas, a princípio e - à medida que percorriam as prateleiras - sobre outros interesses comuns, sólidos e líquidos. Quando chegaram aos queijos já tinham descoberto várias afinidades. A principal era um gosto pelo champignon que beirava a paixão.

Devo esclarecer que nem ele nem ela eram jovens. Mas ainda havia nos dois - como uma débil chama sob a caçarola, o bastante para manter o molho morno, mas longe da ebulição - um saudável apetite pela vida.

- Conheço uma receita de champignon... - disse ela, baixando os olhos.

Ele chegou mais perto para sussurrar:

- Como são?

- Recheados.

- Mmmmmm.

- Só me faltam trufas para completar a receita. Nunca encontro trufas...

Ele olhou para os lados antes de dizer no ouvido dela:

- Tenho trufas na minha casa. Da França.

- Não!

- Talvez um dia nós pudéssemos...

- Meus champignons recheados, finalmente, com trufas! É um sonho que eu tenho desde que...

- Desde que?

- Desde que meu marido morreu.

Ele engoliu em seco. Estavam agora na seção de bebidas.

- Seu marido tinha trufas?

- Não é isso. É que... - ela estava alvoroçada. Pegou uma garrafa de Grande Marnier para disfarçar seu embaraço. - É que comecei a cozinhar depois que meu marido faleceu para passar o tempo. O meu grande prato é o champignon recheado. Mas nunca fiz com trufas.

- Há quantos anos você...

- Sim?

- Está sem trufas?

Ela estava rubra como um rótulo de Johnny Walker (Red Label).

- Doze anos.

- Curioso. Nos cinco anos desde que minha esposa faleceu, nunca fiz nada com as minhas trufas. Fora um ou outro molho que a cozinheira invariavelmente estraga.

Alguma coisa nasceu entre os dois naquele instante. Alguma coisa ainda crua, a sugestão da sombra da possibilidade de uma idéia. Não podiam ter certeza de que daria certo. Às vezes está tudo conforme a receita - champignons dos grandes, o recheio de queijo, a manteiga e o creme para o molho, as trufas acrescentadas ao molho antes de gratinar - e não dá certo. Mas como saber, sem provar?

Esta história tem dois finais. Doce e amargo, como na cozinha oriental. Ela pergunta para ele "Você quer?", ele pergunta "Na minha casa ou na sua?" e ela responde "Na minha, porque eu conheço a cozinha". No outro final, os dois se despedem, nunca mais se vêem e o espectro de uma possível "sauce" com trufas perfeitas para o champignon recheado fica pairando entre as prateleiras para sempre, enquanto os preços aumentam em silêncio.

3 comentários:

Anônimo disse...

o segundo final é o único que se aproxima um pouco da minha realidade

Anônimo disse...

Luis Fernando Veríssimo é muito massa =)

Unknown disse...

Essa é uma segunda versão desse conto brilhante. E, infelizmente,muito do brilho se perdeu:diálogos interrompidos, frases
amputadas,a sensação é de que se optou (será que o autor sabe?) pela simplificação do texto, como se um pequeno conto bem-humorado não pudesse ser também complexo e até filosófico.Uma pena. Ainda bem que tenho o original...